ADC nº 16: Há responsabilidade
subsidiária do Estado na terceirização em caso de inadimplemento das obrigações
trabalhistas pelo empregador?[1]
O STF desconstruiu uma parte substancial da jurisprudência de mais
de uma década do Tribunal Superior do Trabalho (TST). A decisão produziu um
impacto enorme para toda a Administração Pública nacional, ao reavaliar a
questão a responsabilidade subsidiária do Estado, nos casos de terceirização de
serviços, se ocorrer o descumprimento das obrigações trabalhistas. O caso em
questão teve origem na ação declaratória de constitucionalidade n. 16, com
pedido liminar, ajuizada em março de 2007, pelo então Governador do Distrito
Federal José Roberto Arruda, em que se objetivava o reconhecimento e declaração
da constitucionalidade do dispositivo constante no art. 71, §1º da Lei nº
8.666/93, que possui o seguinte teor:
"Art.
71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários,
fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1º A inadimplência do contratado com
referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à
Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá
onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e
edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.”
Como se disse, o
STF superou o entendimento do TST, mais precisamente, a Súmula nº 331, que, a
despeito da existência do dispositivo, responsabilizava subsidiariamente tanto
a Administração Direta, quanto a Indireta, em relação aos débitos trabalhistas,
quando atuar como contratante de qualquer serviço de terceiro especializado. A
controvérsia versaria especificamente no inciso IV do referido Enunciado, cuja
transcrição o fazemos abaixo:
"IV - O
inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na
responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas
obrigações, inclusive quando aos órgãos da administração direta, das
autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de
economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem
também do título executivo judicial (artigo 71 da Lei nº 8.666/93)".
Note-se que, segundo
o autor da ADC, tal Enunciado consubstanciaria em entendimento que ofenderia os
princípios da legalidade, da liberdade, o princípio da ampla acessibilidade nas
licitações públicas e o princípio da responsabilidade do Estado por meio da
adoção da teoria o risco administrativo (arts. 5º, inciso II, e 37, caput,
inciso XXI, e § 6º, da Constituição Federal).
Questionando essa tese, pleiteou o Governador do
Distrito Federal a concessão da medida liminar no sentido de suspender até o
julgamento de mérito da ação declaratória todos os processos que envolvessem a
aplicação do inciso IV, do Enunciado nº 331, do TST. Assim, seria vedado a
qualquer juízo ou Tribunal proferir qualquer nova decisão, para aplicar ou
afastar eficácia o já citado artigo 71, § 1º. Requereu também, a suspensão, com
eficácia ex tunc, dos efeitos de
quaisquer decisões, proferidas a qualquer título, que tenham afastado a
aplicação do artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93 ou que tenham aplicado o
inciso IV, do Enunciado nº 331.
Em 10 de maio de
2007, o relator Ministro Cezar Peluso, atual Presidente do Supremo Tribunal
Federal, monocraticamente, indeferiu o mencionado pleito liminar por entender
que haveria complexidade da causa de pedir. Fundamentou ainda tal negação, no
fato de seria precipitado conceder liminar destinada a suspender o julgamento
de todos os processos que envolvessem a aplicação do art. 71, § 1º, antes que
se dotasse o processo objetivo em questão dos elementos instrutórios aptos a
melhor moldar o convencimento judicial. Por último, solicitou, informação do
TST sobre a aplicação da norma questionada.[4]
Em 10 de setembro
de 2008, teve início o julgamento do mérito da Ação Declaratória de
Constitucionalidade nº 16. Primeiramente, o relator Ministro Cezar Peluso votou
pelo indeferimento da petição inicial para arquivar a ação, pois não haveria um
requisito imprescindível para o ajuizamento da ação declaratória de
constitucionalidade, qual seja, a existência de controvérsia judicial a erodir
a presunção de constitucionalidade da lei, nos termos do art. 14, III da Lei nº
9.869/99. Afirmou ainda que o autor da ação não teria demonstrado no pedido que
houvesse, no meio jurídico, dúvida relevante sobre a legitimidade da norma,
tendo se limitado apenas a realizar a juntada de 3 (três) cópias de decisões de
TST que não versaram sobre a questão de inconstitucionalidade do art. 71, § 1º,
da Lei nº 8.666/93. Argumentou, ainda, que o Enunciado nº 331 não declarou
inconstitucional o art. 71, §1º, mas sim admitiu a responsabilização da
administração pública a partir da análise caso a caso dos contratos de
terceirização a partir de outros dispositivos legais e constitucionais.
Determina-se apenas a responsabilização da
Administração quanto as obrigações trabalhistas se ela e o órgão tomador dos
serviços tenham participado da relação processual e a Administração Pública
tenha participado do processo trabalhista, se defendido, e ao final, sido
condenada.[5]
Em sentido
oposto, o Ministro Marco Aurélio[6] rebateu o afirmado, alegando que a utilidade do julgado seria enorme,
pois que existiria “multiplicação de conflitos judiciais acerca da matéria” e o
interesse em ver a questão analisada pelo Pretório Excelso não seria somente do
Distrito Federal, mas sim de várias outras unidades da federação e da própria
União, que pediram para ingressar na ação.[7] Acrescentou ainda que o TST teria editado a Súmula nº 331
exatamente para orientar as decisões da Justiça do Trabalho e que o verbete
teria implicitamente projetado o dispositivo da Lei nº 8.666/93 para “o campo
da inconstitucionalidade.”
O julgamento
então acabou sendo suspenso pelo pedido de vista do Ministro Carlos Alberto
Menezes Direito, hoje falecido. Na data de 24 de novembro de 2010, o julgamento
foi retomado pela Ministra Carmen Lúcia, uma vez que o ministro sucessor do
falecido Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, o Ministro Dias Toffoli, à
época do julgamento havia atuado neste processo na qualidade de Advogado Geral
da União, defendendo a presunção iuris
tantum de constitucionalidade do art. 71, § 1º da Lei de Licitações e
Contratos Administrativos. Na retomada do julgamento, o atual Presidente do
Supremo Tribunal Federal e relator da matéria, Ministro Cezar Peluso reiterou o
argumento para justificar o seu voto pelo arquivamento da ADC por falta de
comprovação da dúvida sobre a constitucionalidade.
Em sentido
contrário, a Ministra Carmen Lúcia afirmou a existência de controvérsia a ser
analisada pela Corte, porque o Enunciado nº 331 do TST teria ensejado uma série
de discussões nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs). O advento do verbete
conduziu tais cortes a considerar que haveria inconstitucionalidade do §1º do
art. 71 da Lei 8666/93. Tanto é que diversas Reclamações Constitucionais foram
ajuizadas no Supremo, justamente em razão da controvérsia sobre a
constitucionalidade da norma. Diante disso, se pronunciou pelo conhecimento e
pelo pronunciamento da Suprema Corte quanto ao mérito ad causam.[8] No mérito, a Ministra citou o art. 37, § 6º da Carta Magna sobre
a responsabilidade objetiva extracontratual para afastar sua aplicação ao caso.
Uma coisa seria a responsabilidade contratual da Administração Pública pelos
problemas na terceirização e outra, a extracontratual ou patrimonial. Aduziu
ainda que o Estado responderia por atos lícitos de ordem contratual, ou por
atos ilícitos pelos danos praticados.
O Ministro Marco
Aurélio observou, quanto ao mérito, que o TST consolidou o seu entendimento
acerca da matéria com base nas normas dos arts. 2º, § 2º da CLT, que define o
que é empregador, e no art. 37, § 6º da Constituição Federal, que prevê a
responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público pelos danos causados
por seus agentes a terceiros. Quanto ao primeiro artigo, observou que a
premissa da solidariedade nele prevista seria em razão da direção, o controle,
ou a administração da empresa, não se daria no caso, porque o Poder Público não
teria a direção, a administração, ou o controle da empresa prestadora de
serviços. Já em relação ao segundo artigo, o Enunciado nº 331 considerou a
responsabilidade objetiva do Estado, o que não ocorreria, já que não haveria
ato do agente público causando prejuízo a terceiros que seriam os prestadores
de serviço.
Por outro lado, o
Ministro Ayres Britto se posicionou no sentido da inconstitucionalidade apenas
no que respeita à terceirização de mão-de-obra, pois a Constituição teria
esgotado as formas de recrutamento de mão-de-obra permanente para a
Administração Pública, por meio do concurso público, da nomeação para cargo em
comissão e contratação por prazo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público, não tendo se referido, assim, a
terceirização. Salientou ainda, que esta forma de contratação constituir-se-ia
em recrutamento de mão-de-obra que serviria ao tomador dos serviços,
Administração Pública, e não à empresa contratada, terceirizada. Por fim,
afirmou que, em virtude de se aceitar a validade jurídica da terceirização,
dever-se-ia, pelo menos, admitir a responsabilidade subsidiária da
Administração Pública, beneficiária do serviço, ou seja, da mão-de-obra
recrutada por interposta pessoa. O ministro, porém, restou-se vencido.
A maioria dos
ministros entendeu que a mera inadimplência da empresa contratada não possui o
condão de por si só transferir à Administração Pública a responsabilidade pelos
pagamentos dos encargos. Isso não significa que eventual omissão da
Administração Pública na obrigação de fiscalizar as obrigações do contratado
não pode vir a gerar essa responsabilidade. Pelo contrário, pode sim.[9] Nessa linha, acabou por se reconhecer a constitucionalidade do
artigo 71, §1º e, com isso, concluindo-se que o TST não poderá generalizar ou
presumir a culpa da Administração. Ao contrário, para haver a responsabilização
subsidiária, faz-se necessário comprovar caso a caso a falha ou falta de
fiscalização pelo órgão público competente.
Em resumo, a
nosso entender, o quadro geral foi o seguinte: (i) vencido o Ministro Ayres
Britto que entendeu pela inconstitucionalidade da norma da Lei nº 8666/93; (ii)
não prosperou a tese do Ministro Relator pelo não conhecimento da ADC ; (iii)
os demais ministros reconheceram a constitucionalidade do art. 71, §1º e,
mitigando a Súmula 331 do TST, exigindo que, daqui em diante, seja comprovado
casuisticamente a falha ou falta de fiscalização pelo órgão público competente
para que seja possível a responsabilização subsidiária da Administração Pública
direta ou indireta (tomadora do serviço) por inadimplemento das obrigações
trabalhistas pelo empregador[10].
[1] Comentário
elaborado à partir da análise dos Informativos 519 e 610 do STF, bem como das
sessões de julgamento televisionadas no TV Justiça.
[2] Bacharel em direito pela UFF. Pós-Graduando
Lato Sensu em Direito e Processo pelo Curso Toga/Universidade Católica de
Petrópolis.
[3] Bacharel em direito pela UFF. Advogado. Ex-Residente
Jurídico da PGE-RJ. Professor Substituto na Universidade Federal Fluminense.
[4] STF, ADC 16 MC / DF, Rel. Min. Cezar Peluso, J. 10.05.2007, DJ
17.05.2007. Comentário elaborado à partir da análise dos Informativos 519 e 610
do STF.
[5] Conforme as próprias palavras do Relator:
“É inútil para o tribunal perder-se aqui neste caso e reconhecer uma
constitucionalidade que jamais esteve em dúvida em lugar nenhum.”
[6] Ex-membro da Procuradoria Regional do
Trabalho da 1ª Região e do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, e do
Tribunal Superior do Trabalho
[7] “Não podemos ser tão ortodoxos”, disse
para defender o julgamento de mérito do pedido.
[8] Em razão do entendimento fixado na ADC nº
16, o Plenário do Supremo Tribunal Federal deu provimento a uma série de
Reclamações Constitucionais ajuizadas em face de decisões do TST, Tribunais
Regionais do Trabalho fundamentadas na Súmula nº 331, que teriam violado a
cláusula de reserva de plenário ao entenderem pela inconstitucionalidade do
art. 71, §1º da Lei nº 8666/93, afastando assim este dispositivo, sem a
submissão da matéria de controle difuso de constitucionalidade ao Tribunal
Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, conforme apregoa o art. 97 da Carta
Magna e a Súmula Vinculante nº 10 do STF.
[9] Nesse sentido, é o entendimento do
Ministro Maurício Godinho Delgado: “Ora, a entidade estatal que pratique
terceirização com empresa inidônea (isto é, empresa que se torne inadimplente
com relação a direitos trabalhistas) comete culpa in eligendo (má escolha do contratante), mesmo que tenha firmado a
seleção por meio licitatório. Ainda que não se admita essa primeira dimensão da
culpa, incide, no caso, outra dimensão, no mínimo a culpa in vigilando (má fiscalização das obrigações contratuais e seus
efeitos). Passa, desse modo, o ente do Estado a responder pelas verbas
trabalhistas devidas pelo empregador terceirizante no período de efetiva
terceirização (inciso IV da Súmula 331, TST). DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed.
São Paulo: LTr, 2010, p. 441.
[10] Em sentido oposto, o atual Ministro do
Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado já afirmava que: “A responsabilidade subsidiária preconizada
no inciso IV da Súmula 331 aplica-se também aos créditos trabalhistas
resultantes de contratos de terceirização pactuados por entidades estatais?
Seguramente, sim. Contudo, o texto da Lei de Licitações aparentemente pretendeu
excluir tais entidades do vínculo responsabilizatório examinado. De fato,
estabelece o §1º do art. 71 da Lei n. 8666, de 21.6.93, que a inadimplência do
contratado com referência às dívidas trabalhistas e de outra natureza ‘... não
transfere á Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento...’ A
jurisprudência dominante, porém, não tem conferido guarida à tese legal de
irresponsabilização do Estado e suas entidades em face dos resultados
trabalhistas de terceirização pactuada. (...). No tocante à responsabilização
em contextos terceirizantes não excepcionou o Estado e suas entidades (inciso
IV da referida súmula). E não poderia, efetivamente, acolher semelhante exceção
– que seria grosseiro privilégio antissocial – pelo simples fato de que tal exceção não se encontra autorizada
pela Carta Magna do pais (ao contrário da expressa vedação de vínculo
empregatício ou administrativo irregular: art. 37, II e § 2º, CF/88).
Mais ainda: tal exceção efetuada pela Lei de Licitações desrespeitaria, frontalmente, clássico preceito constitucional
responsabilizatório das entidades estatais (a regra da responsabilidade
objetiva do Estado pelos atos de seus agentes, insculpida já há décadas na
história das constituições brasileiras). Semelhante preceito constitucional
responsabilizatório não só foi mantido pela Carta de 1988 (art. 37, § 6º,
CF/88) como foi inclusive ampliado pela nova Constituição, abrangendo
até mesmo as pessoas jurídicas de direito privado prestadores de serviços
públicos (§ 6º do art. 37, CF/88). Ora, a Súmula 331, IV, não poderia,
efetivamente, absorver e reportar-se ao privilégio de isenção
responsabilizatória contido no art. 71, § 1º da Lei de Licitações – por ser tal
privilégio flagrantemente inconstitucional. (...) Não poderia, de fato,
incorporar tal regra jurídica pela simples razão de que norma inconstitucional
não deve produzir efeitos.” (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed.
São Paulo: LTr, 2010, p. 440-441.) Grifos acrescentados.
Caros, a terceirização feita pela Adm. Pública é assunto polêmico. Assim, por tal motivo, a Resolução n. 174 de 24.5.2011 deu nova redação ao inciso IV e acrescentou os incisos V e VI à súmula (justamente para "mitigar" a responsabilidade da Adm, Pública):
ResponderExcluirRedação antiga:
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei no 8.666, de 21.06.1993).
Nova redação:
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
(acrescenta os itens V e VI)
V – Os entes integrantes da administração pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação.
De qualquer forma, o tema ainda continua polêmico. Obrigada pela participação Siddharta e Rodolpho.Profa. Wanise Cabral.