sábado, 5 de maio de 2012


ADC nº 16: Há responsabilidade subsidiária do Estado na terceirização em caso de inadimplemento das obrigações trabalhistas pelo empregador?[1]
Rodolpho Cézar Aquilino Bacchi[2]
Siddharta Legale Ferreira[3]

O STF desconstruiu uma parte substancial da jurisprudência de mais de uma década do Tribunal Superior do Trabalho (TST). A decisão produziu um impacto enorme para toda a Administração Pública nacional, ao reavaliar a questão a responsabilidade subsidiária do Estado, nos casos de terceirização de serviços, se ocorrer o descumprimento das obrigações trabalhistas. O caso em questão teve origem na ação declaratória de constitucionalidade n. 16, com pedido liminar, ajuizada em março de 2007, pelo então Governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, em que se objetivava o reconhecimento e declaração da constitucionalidade do dispositivo constante no art. 71, §1º da Lei nº 8.666/93, que possui o seguinte teor:
"Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1º A inadimplência do contratado com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.”
 
            Como se disse, o STF superou o entendimento do TST, mais precisamente, a Súmula nº 331, que, a despeito da existência do dispositivo, responsabilizava subsidiariamente tanto a Administração Direta, quanto a Indireta, em relação aos débitos trabalhistas, quando atuar como contratante de qualquer serviço de terceiro especializado. A controvérsia versaria especificamente no inciso IV do referido Enunciado, cuja transcrição o fazemos abaixo:

"IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quando aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (artigo 71 da Lei nº 8.666/93)".

            Note-se que, segundo o autor da ADC, tal Enunciado consubstanciaria em entendimento que ofenderia os princípios da legalidade, da liberdade, o princípio da ampla acessibilidade nas licitações públicas e o princípio da responsabilidade do Estado por meio da adoção da teoria o risco administrativo (arts. 5º, inciso II, e 37, caput, inciso XXI, e § 6º, da Constituição Federal).
Questionando essa tese, pleiteou o Governador do Distrito Federal a concessão da medida liminar no sentido de suspender até o julgamento de mérito da ação declaratória todos os processos que envolvessem a aplicação do inciso IV, do Enunciado nº 331, do TST. Assim, seria vedado a qualquer juízo ou Tribunal proferir qualquer nova decisão, para aplicar ou afastar eficácia o já citado artigo 71, § 1º. Requereu também, a suspensão, com eficácia ex tunc, dos efeitos de quaisquer decisões, proferidas a qualquer título, que tenham afastado a aplicação do artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93 ou que tenham aplicado o inciso IV, do Enunciado nº 331.
            Em 10 de maio de 2007, o relator Ministro Cezar Peluso, atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, monocraticamente, indeferiu o mencionado pleito liminar por entender que haveria complexidade da causa de pedir. Fundamentou ainda tal negação, no fato de seria precipitado conceder liminar destinada a suspender o julgamento de todos os processos que envolvessem a aplicação do art. 71, § 1º, antes que se dotasse o processo objetivo em questão dos elementos instrutórios aptos a melhor moldar o convencimento judicial. Por último, solicitou, informação do TST sobre a aplicação da norma questionada.[4]

            Em 10 de setembro de 2008, teve início o julgamento do mérito da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16. Primeiramente, o relator Ministro Cezar Peluso votou pelo indeferimento da petição inicial para arquivar a ação, pois não haveria um requisito imprescindível para o ajuizamento da ação declaratória de constitucionalidade, qual seja, a existência de controvérsia judicial a erodir a presunção de constitucionalidade da lei, nos termos do art. 14, III da Lei nº 9.869/99. Afirmou ainda que o autor da ação não teria demonstrado no pedido que houvesse, no meio jurídico, dúvida relevante sobre a legitimidade da norma, tendo se limitado apenas a realizar a juntada de 3 (três) cópias de decisões de TST que não versaram sobre a questão de inconstitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93. Argumentou, ainda, que o Enunciado nº 331 não declarou inconstitucional o art. 71, §1º, mas sim admitiu a responsabilização da administração pública a partir da análise caso a caso dos contratos de terceirização a partir de outros dispositivos legais e constitucionais.      
Determina-se apenas a responsabilização da Administração quanto as obrigações trabalhistas se ela e o órgão tomador dos serviços tenham participado da relação processual e a Administração Pública tenha participado do processo trabalhista, se defendido, e ao final, sido condenada.[5]
            Em sentido oposto, o Ministro Marco Aurélio[6] rebateu o afirmado, alegando que a utilidade do julgado seria enorme, pois que existiria “multiplicação de conflitos judiciais acerca da matéria” e o interesse em ver a questão analisada pelo Pretório Excelso não seria somente do Distrito Federal, mas sim de várias outras unidades da federação e da própria União, que pediram para ingressar na ação.[7] Acrescentou ainda que o TST teria editado a Súmula nº 331 exatamente para orientar as decisões da Justiça do Trabalho e que o verbete teria implicitamente projetado o dispositivo da Lei nº 8.666/93 para “o campo da inconstitucionalidade.”

            O julgamento então acabou sendo suspenso pelo pedido de vista do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, hoje falecido. Na data de 24 de novembro de 2010, o julgamento foi retomado pela Ministra Carmen Lúcia, uma vez que o ministro sucessor do falecido Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, o Ministro Dias Toffoli, à época do julgamento havia atuado neste processo na qualidade de Advogado Geral da União, defendendo a presunção iuris tantum de constitucionalidade do art. 71, § 1º da Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Na retomada do julgamento, o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal e relator da matéria, Ministro Cezar Peluso reiterou o argumento para justificar o seu voto pelo arquivamento da ADC por falta de comprovação da dúvida sobre a constitucionalidade.
            Em sentido contrário, a Ministra Carmen Lúcia afirmou a existência de controvérsia a ser analisada pela Corte, porque o Enunciado nº 331 do TST teria ensejado uma série de discussões nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs). O advento do verbete conduziu tais cortes a considerar que haveria inconstitucionalidade do §1º do art. 71 da Lei 8666/93. Tanto é que diversas Reclamações Constitucionais foram ajuizadas no Supremo, justamente em razão da controvérsia sobre a constitucionalidade da norma. Diante disso, se pronunciou pelo conhecimento e pelo pronunciamento da Suprema Corte quanto ao mérito ad causam.[8] No mérito, a Ministra citou o art. 37, § 6º da Carta Magna sobre a responsabilidade objetiva extracontratual para afastar sua aplicação ao caso. Uma coisa seria a responsabilidade contratual da Administração Pública pelos problemas na terceirização e outra, a extracontratual ou patrimonial. Aduziu ainda que o Estado responderia por atos lícitos de ordem contratual, ou por atos ilícitos pelos danos praticados.
            O Ministro Marco Aurélio observou, quanto ao mérito, que o TST consolidou o seu entendimento acerca da matéria com base nas normas dos arts. 2º, § 2º da CLT, que define o que é empregador, e no art. 37, § 6º da Constituição Federal, que prevê a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público pelos danos causados por seus agentes a terceiros. Quanto ao primeiro artigo, observou que a premissa da solidariedade nele prevista seria em razão da direção, o controle, ou a administração da empresa, não se daria no caso, porque o Poder Público não teria a direção, a administração, ou o controle da empresa prestadora de serviços. Já em relação ao segundo artigo, o Enunciado nº 331 considerou a responsabilidade objetiva do Estado, o que não ocorreria, já que não haveria ato do agente público causando prejuízo a terceiros que seriam os prestadores de serviço.
            Por outro lado, o Ministro Ayres Britto se posicionou no sentido da inconstitucionalidade apenas no que respeita à terceirização de mão-de-obra, pois a Constituição teria esgotado as formas de recrutamento de mão-de-obra permanente para a Administração Pública, por meio do concurso público, da nomeação para cargo em comissão e contratação por prazo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, não tendo se referido, assim, a terceirização. Salientou ainda, que esta forma de contratação constituir-se-ia em recrutamento de mão-de-obra que serviria ao tomador dos serviços, Administração Pública, e não à empresa contratada, terceirizada. Por fim, afirmou que, em virtude de se aceitar a validade jurídica da terceirização, dever-se-ia, pelo menos, admitir a responsabilidade subsidiária da Administração Pública, beneficiária do serviço, ou seja, da mão-de-obra recrutada por interposta pessoa. O ministro, porém, restou-se vencido.
            A maioria dos ministros entendeu que a mera inadimplência da empresa contratada não possui o condão de por si só transferir à Administração Pública a responsabilidade pelos pagamentos dos encargos. Isso não significa que eventual omissão da Administração Pública na obrigação de fiscalizar as obrigações do contratado não pode vir a gerar essa responsabilidade. Pelo contrário, pode sim.[9] Nessa linha, acabou por se reconhecer a constitucionalidade do artigo 71, §1º e, com isso, concluindo-se que o TST não poderá generalizar ou presumir a culpa da Administração. Ao contrário, para haver a responsabilização subsidiária, faz-se necessário comprovar caso a caso a falha ou falta de fiscalização pelo órgão público competente.
            Em resumo, a nosso entender, o quadro geral foi o seguinte: (i) vencido o Ministro Ayres Britto que entendeu pela inconstitucionalidade da norma da Lei nº 8666/93; (ii) não prosperou a tese do Ministro Relator pelo não conhecimento da ADC ; (iii) os demais ministros reconheceram a constitucionalidade do art. 71, §1º e, mitigando a Súmula 331 do TST, exigindo que, daqui em diante, seja comprovado casuisticamente a falha ou falta de fiscalização pelo órgão público competente para que seja possível a responsabilização subsidiária da Administração Pública direta ou indireta (tomadora do serviço) por inadimplemento das obrigações trabalhistas pelo empregador[10].


[1] Comentário elaborado à partir da análise dos Informativos 519 e 610 do STF, bem como das sessões de julgamento televisionadas no TV Justiça.
[2] Bacharel em direito pela UFF. Pós-Graduando Lato Sensu em Direito e Processo pelo Curso Toga/Universidade Católica de Petrópolis.
[3] Bacharel em direito pela UFF. Advogado. Ex-Residente Jurídico da PGE-RJ. Professor Substituto na Universidade Federal Fluminense.
[4] STF, ADC 16 MC / DF, Rel.  Min. Cezar Peluso, J. 10.05.2007, DJ 17.05.2007. Comentário elaborado à partir da análise dos Informativos 519 e 610 do STF.
[5] Conforme as próprias palavras do Relator: “É inútil para o tribunal perder-se aqui neste caso e reconhecer uma constitucionalidade que jamais esteve em dúvida em lugar nenhum.”
[6] Ex-membro da Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região e do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, e do Tribunal Superior do Trabalho
[7] “Não podemos ser tão ortodoxos”, disse para defender o julgamento de mérito do pedido.
[8] Em razão do entendimento fixado na ADC nº 16, o Plenário do Supremo Tribunal Federal deu provimento a uma série de Reclamações Constitucionais ajuizadas em face de decisões do TST, Tribunais Regionais do Trabalho fundamentadas na Súmula nº 331, que teriam violado a cláusula de reserva de plenário ao entenderem pela inconstitucionalidade do art. 71, §1º da Lei nº 8666/93, afastando assim este dispositivo, sem a submissão da matéria de controle difuso de constitucionalidade ao Tribunal Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, conforme apregoa o art. 97 da Carta Magna e a Súmula Vinculante nº 10 do STF.
[9] Nesse sentido, é o entendimento do Ministro Maurício Godinho Delgado: “Ora, a entidade estatal que pratique terceirização com empresa inidônea (isto é, empresa que se torne inadimplente com relação a direitos trabalhistas) comete culpa in eligendo (má escolha do contratante), mesmo que tenha firmado a seleção por meio licitatório. Ainda que não se admita essa primeira dimensão da culpa, incide, no caso, outra dimensão, no mínimo a culpa in vigilando (má fiscalização das obrigações contratuais e seus efeitos). Passa, desse modo, o ente do Estado a responder pelas verbas trabalhistas devidas pelo empregador terceirizante no período de efetiva terceirização (inciso IV da Súmula 331, TST). DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 441.
[10] Em sentido oposto, o atual Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado já afirmava que: “A responsabilidade subsidiária preconizada no inciso IV da Súmula 331 aplica-se também aos créditos trabalhistas resultantes de contratos de terceirização pactuados por entidades estatais? Seguramente, sim. Contudo, o texto da Lei de Licitações aparentemente pretendeu excluir tais entidades do vínculo responsabilizatório examinado. De fato, estabelece o §1º do art. 71 da Lei n. 8666, de 21.6.93, que a inadimplência do contratado com referência às dívidas trabalhistas e de outra natureza ‘... não transfere á Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento...’ A jurisprudência dominante, porém, não tem conferido guarida à tese legal de irresponsabilização do Estado e suas entidades em face dos resultados trabalhistas de terceirização pactuada. (...). No tocante à responsabilização em contextos terceirizantes não excepcionou o Estado e suas entidades (inciso IV da referida súmula). E não poderia, efetivamente, acolher semelhante exceção – que seria grosseiro privilégio antissocial – pelo simples fato de que tal exceção não se encontra autorizada pela Carta Magna do pais (ao contrário da expressa vedação de vínculo empregatício ou administrativo irregular: art. 37, II e § 2º, CF/88). Mais ainda: tal exceção efetuada pela Lei de Licitações desrespeitaria, frontalmente, clássico preceito constitucional responsabilizatório das entidades estatais (a regra da responsabilidade objetiva do Estado pelos atos de seus agentes, insculpida já há décadas na história das constituições brasileiras). Semelhante preceito constitucional responsabilizatório não só foi mantido pela Carta de 1988 (art. 37, § 6º, CF/88) como foi inclusive ampliado pela nova Constituição, abrangendo até mesmo as pessoas jurídicas de direito privado prestadores de serviços públicos (§ 6º do art. 37, CF/88). Ora, a Súmula 331, IV, não poderia, efetivamente, absorver e reportar-se ao privilégio de isenção responsabilizatória contido no art. 71, § 1º da Lei de Licitações – por ser tal privilégio flagrantemente inconstitucional. (...) Não poderia, de fato, incorporar tal regra jurídica pela simples razão de que norma inconstitucional não deve produzir efeitos.” (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 440-441.) Grifos acrescentados.

terça-feira, 1 de maio de 2012

O operário em Construção - Vinicius de Moraes



E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás (Lucas, cap. IV, versículos 5-8).
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.


De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento


Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construcão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.


Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua propria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.


Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Excercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.


E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.


E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução


Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.


Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!


Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edificio em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.


Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.


Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!


- Loucura! - gritou o patrão
Nao vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.


E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construido
O operário em construção



- Vinicius de Moraes