sexta-feira, 23 de março de 2012

A ENCÍCLICA RERUM NOVARUM E O DIREITO DO TRABALHO¹

A Rerum Novarum2, de 1891, foi e ainda é festejada como a “Carta Magna” da Política Social.3 Porém, os autores ao citá-la, omitem (ou não destacam) o fato de que se, por um lado, a Encíclica trata da condição dos operários, por outro lado, defende a proteção e a aquisição da propriedade baseando-as no “Direito Natural”; deste modo, não fica claro que a intervenção do Estado em defesa dos trabalhadores, e na estruturação das leis sociais, tem um objetivo, qual seja: evitar o “temível conflito” entre os operários e os proprietários dos meios de produção. Assim, evita-se esclarecer que existe um conteúdo ideológico em tais preceitos; e ainda, esconde-se, no discurso que conclama a caridade dos ricos, a pregação da resignação dos pobres.

Logo de inicio Leão XIII já diz a que veio a Rerum Novarum:

a sede de inovações, que há muito tempo se apoderou da sociedade e as tem numa agitação febril [...] deu resultado final a um temível conflito. Assim, graves interesses estão em jogo [...] e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espírito humano. Desta forma, nos pareceu oportuno [...] falar-vos da Condição Operária.4


Neste sentido, Leão XIII destacava, como uma das causas do conflito, a extinção das corporações de ofício. Desaparecendo estas, teriam ido com elas os princípios e o “sentimento religioso” das leis e das instituições públicas. Assim, a cobiça teria vindo para agravar ainda mais o mal. Logo, para ele tornava-se necessário impingir uma nova retórica a fim de acalmar os ânimos das multidões desordeiras.
Em contraposição à solução socialista, que instiga nos pobres o “ódio invejoso” contra os que possuem, Leão XIII defendia a propriedade particular por ser este um princípio do “Direito Natural”. Mas perguntamos: se for natural ter propriedade, por que ela não é naturalmente possuída por todos os homens? Não haveria aí uma injustiça divina? Não! Responderia o Papa, pois: quem não tem a terra e os seus frutos, supre-os pelo trabalho, de maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover as necessidades da vida. [...] “De tudo isto resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme a natureza”. 5
Tendo em vista que o direito de propriedade decorreria do Direito Natural como um “direito divino”, a defesa da acumulação do patrimônio e o direito de herança eram justificados em nome da prole. Mas se de um lado, uns detém a propriedade, ao outro lado cabe o trabalho. A solução para o conflito entre as classes seria buscada, assim, na concórdia. Neste sentido, pregava Leão XIII:

o melhor partido consiste em ver as coisas tais quais são [...] o erro capital é crer que as duas classes são inimigas natas umas das outras. [...] é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo humano os membros [...] se adaptam maravilhosamente uns aos outros, [...] assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio.6

Para se alcançar a “harmonia” desejada, a igreja desempenhava a função de reconciliar os ricos e pobres. Assim, ambos deveriam cumprir seus deveres. Desta forma, nega o conflito de classes.7 Quanto aos ricos e aos patrões, dizia Leão XIII:

não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do cristão. [...] Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém.8

Por outro lado, caberia aos pobres a resignação uma vez que o próprio Cristo chama os pobres de “bem-aventurados”.9
Quanto ao Estado, Leão XIII pregava que é dever dos governos assegurar a propriedade particular por meio de “leis sábias”: “[...] Intervenha a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e os legítimos patrões de serem despojados do que é seu”. Para se preservar a ordem deveria o Estado impedir as greves, pois estas causam dano não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns. [...] O remédio mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis”.
Assim, notamos que no discurso de proteção está a preocupação com a defesa da propriedade particular. Neste sentido, a lei seria o instrumento mais eficaz de conformação e controle social. O discurso da “caridade” também foi utilizado no Brasil para justificar a necessidade de “cooperação” entre empregados e empregadores.


1 SILVA, Wanise Cabral. Texto extraído da obra “As fases e as faces do Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr, 2007.

2 Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html

3 Só para ilustrar o grande caráter emotivo que acompanha a ideologia dos doutrinadores trabalhistas, citamos os comentários de Rosado quanto à Rerum Novarum: “Que grandes ensinamentos! Que grandes verdades!” Cf. ROSADO, João de Barros Couto. O Direito do Trabalho no Corporativismo Italiano. Lisboa: Livraria Portugalia, 1945

.4 LEÃO XIII. Rerum Novarum, encíclica sobre a condição dos operários, de 15 de maio de 1891, n.01.

5 Idem. Ibidem., n.06.

6 LEÃO XIII. Op. Cit. n.11.

7 Ver o Manifesto Comunista. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf

8 LEÃO XIII. Op. Cit., n.129 Idem. Ibidem, n.15.


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